sábado, julho 19, 2003

Legendagens

Eu faço colecção de coisas extraordinárias. Não interessa o quê, basta ser fantástico. Seja o que for, se é extravagante e de origem enigmática – eu colecciono. Por exemplo, meteoritos.
Mas para falar de algo que todos podem acompanhar: colecciono notícias de acidentes de comboio. Garanto-vos que se há coisa enigmática, o número de acidentes de comboio – e estou a falar de grandes acidentes – é uma delas. Podem fazer o favor de confirmar nas notícias do dia a dia.
No meu dicionário pessoal, em “impressionante” vem: “número de acidentes de comboio”; sobretudo “comboio contra automóvel”. Meus amigos, é impressionante. Hoje mesmo já ouvi que um comboio em Inglaterra, atropelou um autocarro! E o dia ainda vai curto...
Também colecciono coisas mais ligeiras, é claro.
Muito mais engraçada, apesar de não menos extravagante, é a minha colecção de legendagens enigmáticas que nos são oferecidas pelos nossos canais de televisão. Quem e em que circunstâncias produz tal trabalho, é para mim um mistério.
Antevejo com excitação o dia em que finalmente compreenda tudo... É que não estou a falar de erros subtis – sabe Deus que ninguém teria tempo para tal empreitada – não. Eu sei algo de inglês e isso permite-me ver muitas vezes traduções defeituosas e grosseiramente erradas. Não é destas que estou a falar, se bem que é incompreensível e inaceitável que eu, com o meu inglês de trazer por casa, consiga facilmente corrigir presumíveis profissionais. Mas não se trata disso.
Estou a falar de um nível de legendagem tal, que um qualquer jovem incauto da costa algarvia, fugido à escola mas habituado aos turistas, consegue corrigir enquanto os coça. É ou não é um mistério que haja profissionais, pagos, a produzir tais enormidades? Porquê isto? Um enigma!
O número um da minha colecção é este: Filme. Uma cena familiar: um casal está a acabar de jantar. Ela levanta-se e diz que vai fazer não sei o quê. Ele levanta-se e, solícito, anuncia que vai lavar a loiça: “I’ll do the dishes”. E di-lo em frente ao lava-loiça enquanto poisa os pratos sujos no dito e vai abrindo a torneira da água. Tradução: “Eu faço uns pratos.” Que tal? Gosto desta porque nos indica claramente que eles não vêem o filme enquanto laboram. Mesmo sob o efeito de ácidos, e sem nunca ter ouvido uma palavra de inglês se obteria o clássico e linear “eu lavo a loiça” ou o correcto mas rebuscado “eu lavarei a loiça”. Então como e porquê estas opções? Será algum código entre eles? Algum meio criativo dos serviços secretos para comunicarem? Oh, quem me dera sabê-lo!
Ainda outro exemplo, compreenda quem puder: Acção e aventura. Um casal a fugir a toda a pressa num jipe. Ele conduz. Ela tem um mapa nas mãos e vai dando indicações ao nosso herói que não sabe o caminho. Ele decide virar à esquerda. Ela grita impaciente: “Direita! Direita!”, “Right! Right!”, gesticulando num gesto que para entender nem é preciso ser humano; um cão entenderia. Tradução: “Certo. Certo.”
Ponho-me a pensar nas circunstâncias em que tais barbaridades são produzidas e só consigo imaginar uma das seguintes cenas: uma velhota de olhar vago, tiquetaqueando a dentadura e sem saber muito bem onde se encontra; ou um jovem voluntarioso, ligeiramente gordo que ganhou o hábito de praticar sexo no local de trabalho. Seja qual for a causa – a simples decadência natural ou o excesso de tarefas simultâneas – o resultado é o mesmo: um enorme, um imenso desapego à competência.
Mas, tal como no atletismo, parece não haver limites imbatíveis e os recordes acabam por ser batidos. Também considero que o recorde das legendagens enigmáticas foi batido recentemente (apesar de se tratar de um “trabalho” antigo, eu conto a data de recolha).
Tenho o prazer de anunciar que em 7 de Julho de 2003, à 1:55 a.m., no programa Benny Hill, o Sr. António Teixeira, Deus o guarde, ofereceu aos telespectadores a seguinte obra-prima (uma só palavra que traduz todo este mundo): “Abecinto”. Uma só palavra mas que encerra todo o mundo da legendagem.
Iluminou-me: não é só inglês que eles desconhecem, também a língua materna lhes não é familiar.
Seja como for agradeço a este atleta esta pérola de síntese tão elucidativa. Fiquei também a saber que este fenómeno das traduções enigmáticas é uma antiga tradição e não, como alguns poderiam ser tentados a concluir precipitadamente, mais um resultado da “geração rasca” no tempo do “é assim”.
Ainda sinto que o fenómeno carece de maiores e mais profundas explicações e anseio pela resolução deste mistério. Peço a quem tenha alguma ideia explicativa, o favor de a partilhar comigo. Entretanto não desistirei e prometo que hei-de descobrir. Ai hei-de!

G, o investigador de enigmas

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